Nenhum país funciona politicamente se não tiver um ou mais centros de coordenação política dos grupos adjacentes e da sociedade. Normalmente, se configuram dois centros de coordenação política: um é dado pelo governo e outro pelo principal partido da oposição ou por uma frente oposicionista. Quando faltam ou falham esses centros de coordenação o país entra em crise política. As crises tendem a ser rápidas, da mesma forma que surgem subitamente. Em regra, propendem a soluções positivas pela superação ou deslocamento da força que representa o status quo ou pela sua regeneração.
A atual crise brasileira foge a essas características: veio se instalando paulatinamente; colapsou as principais forças políticas do governo e da oposição; o momento de sua superação (eleições de 2018) representou não só a sua continuidade e seu agravamento, mas também o seu deslocamento para um sentido negativo, retrógrado; e, por fim, a sua duração será longa. No mínimo, até 2022, mas pode ir além.
A crise política veio acompanhada por dois anos de grave recessão econômica e por anos continuados de baixo crescimento, baixo investimento público e privado, alto desemprego e elevada dívida pública. A crise de coordenação política nacional se reflete também na economia e na sociedade.
Os sinais primeiros da atual crise surgiram em 2013. Naquele momento, nem o governo Dilma e nem as oposições foram capazes de apresentar uma saída satisfatória para aqueles sintomas. Não apresentaram direção ou sentido para a sociedade e para o Brasil.
As eleições de 2014 ofereceram a oportunidade de surgimento de uma saída para a crise que já se aguçava. Mas, a campanha eleitoral polarizada, caracterizada pela falta de propostas e pelos xingamentos, não se tornou auspiciosa. Com a posse de Dilma para um novo mandato a crise se agravou, por vários motivos, mas por dois principais: a contestação da legitimidade das eleições por parte de Aécio Neves e do PSDB, o que fez surgir um elemento golpista na conjuntura; e, a crescente perda da capacidade de Dilma de coordenar politicamente o governo e uma maioria no Congresso.
O golpe do impeachment, a radicalização da Lava Jato, a avalanche de denúncias de corrupção as inúmeras prisões de agentes políticos e partidários e, finalmente, a prisão de Lula e o fracasso do governo Temer, colapsaram, primeiro, o PT; depois, o atual MDB e, finalmente, o PSDB. Assim, se abriu o espaço para o fortalecimento de uma força política secundária entre as existentes ou para o surgimento de uma nova força. A sociedade escolheu a última opção, através de Bolsonaro.
É preciso perceber que depois da crise que derrubou Fernando Collor, o Brasil viveu um período de significativa estabilidade política que dourou 20 anos, sendo 8 com FHC, 8 com Lula e 4 com Dilma. Isto ocorreu porque PT e PSDB se instituíram como dois centros de coordenação política nacional junto com a legitimidade e reconhecimento de seus dois respectivos líderes: Lula e Fernando Henrique Cardoso. A coordenação política nacional é exercida por partidos fortes e representativos, por líderes legítimos e reputados ou por uma combinação de partidos e líderes, que foi o caso desse período de estabilidade política. Neste período, o PMDB também jogou um papel importante pois, como tertius, cumpria o papel de garantidor da governabilidade de um e de outro grupo. A traição perpetrada pelo grupo de Michel Temer contra Dilma foi decisiva para romper essa relativa estabilidade que existia.
O resultado de todo esse processo foi o enfraquecimento dos partidos, bancadas encolhidas no Congresso, carência de líderes fortes e populares e vitória de Bolsonaro. Lula foi o único líder cuja liderança havia sobrevivido a essa avalanche destrutiva. Mas, deliberadamente, foi tirado do jogo pelo arbítrio judicial que agiu de forma consciente como representante das forças retrógradas e conservadoras.
A vitória de Bolsonaro é uma desgraça para o Brasil e para as perspectivas de superação da crise. De forma consciente ou atabalhoada, Bolsonaro é em tudo o contrário daquilo que um presidente deveria ser, principalmente neste momento. Um presidente deve unir e apaziguar. Ele desune, agride e dissemina ódio e ressentimentos. Um presidente deve agregar forças. Ele as dispersa, divide e desagrega. Um presidente, como magistrado mais alto do país, deve ter uma conduta respeitosa, respeitada e exemplar. Bolsonaro tem atitudes de um arruaceiro político e perde o respeito dos políticos e da sociedade. Um presidente coordena o ministério e governa. Bolsonaro desgoverna, tuita, desacredita seus ministros, não tem programa, não tem ideias, como disse Rodrigo Maia.
Bolsonaro é o principal opositor à sua principal proposta de reforma: a da Previdência. Os seus dois superministros – Guedes e Moro – viraram ministrinhos. O ministério não tem experiência e nem capacidade. Poucos sabem o que estão fazendo. O presidente afirmou que veio para desconstruir o Brasil. Nisso ele deve ser levado a sério. Um homem que nada fez durante 30 anos de mandato parlamentar, não seria como presidente que viesse fazer alguma coisa. Bolsonaro terçou mentiras durante a campanha inteira. Não era de se esperar que na condição de presidente viesse a ser um laborioso promotor da verdade.
Sem força política partidária, sem força política no Congresso e sem força política popular, o governo Bolsonaro será um governo de crises e destinado ao fracasso. Para sobreviver até 2022, Jair Bolsonaro terá que reinventar-se, acautelar-se. A eventualidade de um governo Mourão também não é auspiciosa, pois também careceria de força política e social. A única viabilidade de um governo Mourão consistiria num pacto nacional no qual ele se colocaria na condição de um governo de transição.
Se o governo vai muito mal, a oposição não vai bem. O PT, principal partido de oposição, vem perdendo, desde 2015, capacidade de coordenação política nacional do campo progressista e democrático. Este campo agora orbita em torno de dois polos: um, constituído pelo PT e outro, constituído pelo PDT, PSB e PCdoB. O PSol se articula numa faixa própria. Com alianças pontuais, os dois polos tendem a caminhar separados até 2022, quando cada um tende a apresentar sua própria alternativa presidencial.
A fraqueza relativa dos partidos e a ausência de um líder inconteste favorece essa fragmentação e a consequente incapacidade de estabelecer uma coordenação política nacional a partir de uma visão de país, de uma plataforma programática e de uma pauta de lutas. Esta incapacidade fragmenta também as lutas dos movimentos sociais que se refugiam em suas especificidades e muitos tendem ao sectarismo invocando o lugar de fala como uma posse privativa, uma exclusividade. Sem a perspectiva de um programa universalizante, partidos e movimentos do campo progressista operarão com suas fraquezas e limites.
A crise política, desta forma, vai se mantendo e prolongando a agonia do Brasil e de seu povo. É uma crise de organização das forças políticas partidárias e uma crise de liderança. É uma crise de capacidade de coordenação e de condução do país. É uma crise de força política. Sem partidos fortes e sem lideranças fortes não há capacidade de coordenação, de aglutinação das forças dispersas e fragmentadas. Partidos e líderes fracos resultam em governos fracos, em fracassos políticos e administrativos.
A direita bolsonarista tende a ser um sopro passageiro, pois Bolsonaro não é um líder autêntico e o PSL é um aglomerado difuso e confuso. O problema está na centro-direita e na esquerda. É preciso construir novas capacidades, renovar as lideranças. Se isto não ocorrer, o Partido Novo, de um lado, e o PSol, de outro, terão espaço para crescer. Esta perspectiva também é de médio prazo. Enquanto isso, os problemas e as tragédias do Brasil se multiplicam.
A análise é de Aldo Fornazieri – cientista político e professor da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESPSP).
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